sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Inteligência Integral: O desafio Transdisciplinar




Inteligência Integral: O desafio Transdisciplinar

ARTIGO DE ROBERTO CREMA

O crescimento exponencial do conhecimento, desconectado de uma visão global; os perigos de uma tecnociência triunfante e efetiva, desvinculada da consciência planetária e do afetivo; enfim, de um obscurantismo nefasto causado por um saber crescentemente acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido faz do religar conhecimento ao amor o mais instigante desafio do momento. Nesse sentido, vale recordar as palavras de Martin Heidegger: Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facilmente acessível. Mas também nenhuma época soube menos o que é o homem.

A constatação é óbvia: diante dos cenários da mundialização, nenhuma inteligência meramente especializada pode responder satisfatoriamente, pois os problemas são globais. Necessitamos de uma inteligência integral, para fazer frente aos tremendos desafios deste século que está nascendo, entre gemidos e risos de uma humanidade em processo de parto. Como afirma o conhecido axioma holístico, Pensar globalmente, agir localmente. Para não agir loucamente, vale acrescentar.

O desafio transdisciplinar é um dos mais instigantes e importantes, nos horizontes contemporâneos. Desde 1986 que a Declaração de Veneza lançou um brado, com valor também de senha, que podemos traduzir como Pontes sobre todas as fronteiras. No documento de Locarno, de 1992, foram destacados os quatro pilares de uma educação transdisciplianr: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a Ser. Testemunhando nossa vocação de flexibilidade, integração e de abertura, esta proposta conspiratória e lucidamente radical, que questiona as raízes, encontra-se nas grades curriculares do Ministério da Educação de nosso país (Brasil).

Aprender a conhecer e a fazer de forma integrada, através da experiência viva e com discernimento continua sendo uma arte a ser devidamente aplicada e aperfeiçoada. Para tal, necessitamos de uma escola do Olhar, pois a visão é a véspera do conhecimento. Abrir o olhar para si, para o outro, para o Universo e o Totalmente Outro, eis uma lição fundamental. Um olhar fluídico, que não fica paralisado num único alvo, capaz de acompanhar a dança do agora. Mudar o mundo é mudar o modo de olhar... Necessitamos, também, de uma escola da Escuta. Escutar antecede compreender. Precisamos transcender esta crise ab-surda, esta surdez diante dos alaridos e canções da realidade.

Não será esta a tarefa fundamental da escola: facilitar que o Aprendiz da Vida, a grande Mestra, incline o seu coração para aprender com os próprios passos, para florescer plenamente onde os seus pés foram plantados? Enfim, como aprender a viver com? Como aprender a ser só, a só Ser, na afirmação do poeta? O cultivo destes fundamentos, para os quais nos convocam o documento de Locarno, é uma grandiosa aventura de reencantamento do mundo e da própria existência.

Estranhamente persiste, em nosso meio, a popular ilusão de que o ser humano se torna plenamente humano, de forma automática, desde que haja as salutares condições básicas e higiênicas. Acontece que nós não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, através de um processo de autorealização que exige um enorme investimento de tempo e de energia, em trilhas evolutivas. O ser humano introduziu uma outra qualidade de evolução neste planeta: a evolução consciente e intencional. Sinto ter que dizer que ser humano dá muito trabalho... Darwin, como um bom naturalista, compreendeu a evolução natural. Acontece que, como sempre nos lembra Leloup, o ser humano é uma mistura de genes e de aventura. É uma possibilidade, um devir, um embrião de plenitude em cada um de nós. Como afirma a sábia parábola, daquele que foi um ícone de totalidade e plenitude humana, há que se investir nos talentos que nos foram confiados. Os que, medrosa e indolentemente os enterram, não serão convidados para o banquete da excelência, conformando a horda medíocre da normose.

Uma nova educação precisa transgredir a normose reinante e decadente. Com suavidade e vigor, com paciência e atrevimento, com flexibilidade e destemor. É com este intuito que quero apontar para esta epopéia a ser desbravada: educar para a Vida, educar para a excelência, educar para Ser.

No cerne da crise contemporânea encontra-se o que tenho denominado de síndrome de analisicismo. Os seus sintomas são muito evidentes: a competitividade extremada, o exercício sistemático da brutalidade, a compulsividade de controlar e subjugar – dividir para reinar! -, a religião do consumismo e a falta generalizado de cuidado, ou seja, o desamor. O império do analisicismo é caracterizado por uma dissociação crônica e pela supressão do reino da interioridade, da subjetividade, da desconexão com o sagrado, determinada pelo mito da objetividade. O sujeito degenerou-se em objeto...

Uma educação que queira facilitar a arte de conviver terá que se lançar na revolucionária proposta de uma alfabetização psíquica. Trata-se da tarefa ousada e imprescindível de colocar a alma nos bancos escolares, desde o pré-primário até as universidades, facilitando que o aprendiz desenvolva inteligência psíquica. Sobretudo com o desenvolvimento das funções básicas, pesquisadas por Jung: pensamento, sentimento, sensação e intuição. A educação convencional apenas tem se ocupado, de forma fragmentada, com o pensamento e a sensação. Incluir em nossos currículos o tema do sentimento e da intuição, harmonizando-as e integrando-as com as demais, é uma tarefa de grande alcance e pertinência, visando o resgate de uma consciência mais vasta, de integridade e de inteireza.

Educar a alma é desenvolver, também, a inteligência emocional. Sabemos que há emoções naturais, que representam verdadeiros mecanismos homeostáticos, que ajudam o organismo na sua sobrevivência individual e coletiva. Necessitamos de uma pedagogia do afeto, que facilite o desenvolvimento de vínculos afetivos. A alegria é uma lição fundamental, na escola da existência. A tristeza é uma estratégia saudável, no contato com as perdas. Aprender a lidar com a raiva é imprescindível, na relação com o mundo. E o medo é outra lição que precisa ser trilhada, no confronto com o desconhecido.

A alfabetização psíquica solicita, também, o desenvolvimento da inteligência relacional. Carl Rogers afirmava que o grupo foi a maior descoberta do século XX. Neste século, foram criadas e aperfeiçoadas técnicas e dinâmicas de grupo, variadas e sofisticadas. Por que não empregá-las no cotidiano escolar? Como aprender a conviver sem o exercício do envolvimento grupal e comunitário, com uma facilitação competente, de forma a se adquirir competências atitudinais diante dos conflitos, dificuldades e impasses do coexistir? Uma educação profilática é a que facilita a aquisição de responsabilidade, ou seja, habilidade em responder. Assim, a educação exerceria a sua função preventiva, diante de tantas mazelas, a nível individual, social e ambiental, derivadas da ignorância psíquica, do desconhecimento dos recursos da alma.

O desenvolvimento da inteligência onírica é outro imperativo e constitui um capítulo muito importante na nova educação. Sonhar constitui um nível de realidade que tem a sua lógica própria, complementar à da vigília. Nessa direção, outra tarefa bastante nobre de uma educação integral é a de facilitar a abertura de visão e de escuta para o exercício de uma inteligência hermenêutica, que habilite o educando a interpretar e compreender os sonhos, pesadelos, tombos, encontros e desencontros da jornada existencial.

Educar requer, ainda, uma abertura para a pedagogia contemplativa, da meditação, do despertar da plena atenção, tão enaltecida pelos antigos e atuais mestres da consciência. Todas as grandes tradições sapienciais são dotadas de tecnologias de desenvolvimento da qualidade noética, do despertar de uma escuta silenciosa, para abrir seu coração para o novo. A mesmice dos trilhos acaba por enferrujar nossas relações, que se alimentam de novidade, de criação. Penso no maior educador do Ocidente que, ao iniciar o seu ensino público, realizou o milagre de transformar a água em vinho... Para a festa não acabar, afirma Leonardo Boff. Transformar a água de um cotidiano previsível e rotineiro no bom vinho de renovação e recriação permanente... eis uma lição básica da pedagogia perene. Este milagre de renovação emana da inteligência noética, trazendo encantamento e graça para um existir mais pleno.

Aqui nos deparamos com o pressuposto antropológico mais pleno, que integra corpo, alma, consciência e Essência. A dimensão noética é a de um espelho que reflete alguma coisa que está além da existência, o Sopro da Vida. Em hebraico, Ruah; em grego, Pneuma; em latim, Espírito. Enfim, a Fonte a partir da qual o reencantamento da existência torna-se possível. Existência é o que passa; Vida é o que É, o que resta quando já nada mais resta, o toque de eternidade na finitude de nosso existir.

Através da escuta noética, entretanto, podemos transpirar esta realidade essencial. Como afirmava Graf-Durckheim, saúde plena – acrescentemos também, educação plena – é quando a essência transparece na existência. É quando nos fazemos congruentes: o que pensamos coincide com o que somos; o que falamos coincide com o que pensamos; o que fazemos coincide com o que falamos...

Não é possível educar para a Vida, sem o resgate da autêntica espiritualidade. Para isto, temos que transgredir a normose educacional em voga, rumo a uma transdisciplinaridade, com a virtude da transculturalidade, que possa nos abrir os horizontes do potencial da espécie para o tema fundamental da transcendência, da transparência, enfim, da transfiguração, apanágio de uma educação centrada na consciência de inteireza. Quando a ignorância existencial se desfaz, o Sol da essência, que habita o relicário mais íntimo de nossas almas, poderá transparecer, iluminando e aquecendo nossas trilhas existenciais.

Estas lições são experienciais. O Sagrado é uma experiência, a partir da qual jorra os valores do respeito, da bondade, da fraternidade, da inclusividade. Para percorrermos a lição da sacralidade, necessitamos de todos os nossos olhos. O olho físico percebe a realidade física. O olho psíquico abrange o universo psíquico. O olho noético acolhe o espaço do Silêncio e do Imaginal, transparecendo a Essência. O Olho do Espírito penetra todos os olhares, abrindo-nos para a Realidade Viva, para a Mansão do Amor.

Finalmente, se não educarmos para a condição do Sujeito, seguiremos reduzindo tudo à condição objetal, na alienação imperialista de um único estado de consciência, com a sua lógica racional, empírica e materialista, elevada aos altares por um paradigma esgotado e ultrapassado. Uma educação integral é a que acolhe, de acordo com a física contemporânea, todos os níveis de realidade (somática, psíquica, noética e essencial) com as suas lógicas próprias e complementares. A iniciação a um novo aprender a aprender, que religa razão ao coração, ciência à consciência, efetividade à afetividade, existência à essência, requer a adoção de uma abordagem transdisciplinar que nos favoreça um estado intensificado de aprendizado e de evolução: sair do cacoete para o samba!

(Síntese extraída por Jane Farias Chagas do texto apresentado no V Congresso Holístico Pan-Americano e VIII Congresso Holístico Nacional: Pedagogia Iniciática – Educar Para Ser, Roberto Crema, 2002).

UM OLHAR PARA NOSSOS JOVENS



Um olhar para os nossos jovens

Roberto Crema

A crise que testemunhamos é de demolição, lição do demo. Lição da fragmentação, do egocentrismo, da exclusão, da falta de escuta, da perda dos valores fundamentais da espécie. É também uma crise da crisálida, de transição, de espasmos de parto de uma nova consciência. Há motivos de sobra para as nossas lágrimas e, também, para os nossos risos.


Como afirma a sabedoria chinesa, crise significa perigo e oportunidade. Para os despreparados, representa estresse e colapso. Para os bem centrados, significa um trampolim para o aprendizado e a evolução. Se não podemos evitar a demolição já em curso, sempre podemos nos preparar para a tarefa de reconstrução, inspirando-nos no lótus, que brota do lodo e o transforma em flor. Transmutar os escombros de nossas torres de Babel do suposto-poder, em pedras de suporte para a edificação de um novo viver, mais integrado, solidário e digno, eis um portentoso desafio do novo milênio.

Diante destes cenários, onde antigas profecias convergem com sóbrios discursos científicos, é imprescindível cuidar de nossos jovens, os Navegantes de um Renovado Mundo, a ser desvelado e edificado. O sintoma talvez mais tocante e desolador de nossos descaminhos é o crescente e alarmante índice do suicídio infanto-juvenil. Uma estatística recente informa que, nos Estados Unidos, quarenta crianças se suicidam, diariamente... Crianças estão matando crianças e se matando, eis uma face do terror de nossos tempos, pela qual, cada um de nós é responsável.

Cuidar de nossos jovens é, antes de tudo, abrir a nossa escuta para os seus desejos, os seus sonhos, os seus temores, os seus arrepios, os seus amores. Ser capaz do diálogo aberto e franco. Como afirmam todos os bons terapeutas, pelas palavras do Dalai-Lama, Não se pode dissipar as trevas da ignorância enquanto não se acender a chama da escuta.

Cuidar de nossos jovens é conspirar por uma nova educação que, além de um rudimentar adestramento intelectual, possa colocar a alma e a consciência na sala de aula. Necessitamos, prementemente, de uma alfabetização psíquica, através de um currículo que inclua a subjetividade e facilite o desenvolvimento das inteligências emocional, onírica, ética, noética, relacional e essencial. Como conclama a própria Unesco, através de recentes e paradigmáticos documentos, urge desenvolver a abordagem transdisciplinar em educação, através de seus quatro pilares: educar para conhecer, educar para fazer, educar para conviver e educar para Ser. Necessitamos, portanto, de uma pedagogia iniciática que, através de uma via interior, facilite que o Aprendiz possa inclinar o coração para aprender a aprender, esclarecendo e nutrindo suas sementes vocacionais, para que possa fazer render os seus naturais e autênticos talentos. Somente os vocacionados estarão preparados para os tremendos desafios deste século, cujas caudalosas águas já navegamos! É com esta visão integral que desenvolvemos, na Unipaz de Brasília, a Formação Holística de Jovens e a Formação de Jovens Líderes.

Cuidar de nossos jovens é, sobretudo, dar um testemunho de um existir mais íntegro e transparente, mais terno, sábio e fraterno. Menos discursos e mais exemplos, menos palavras e mais ações. Gosto de lembrar de um simpósio que assisti num congresso internacional de psicologia transpessoal, sobre tecnologia do sagrado, ocorrido em 1986, focado no tema da violação infantil. Denominado de As Crianças do Trauma, foi coordenado por Christina Grof. Uma terapeuta americana, de forma sábia e contundente, iniciou uma fala, vigorosa e tocante, com estas palavras, que busco resgatar através de um exercício livre de memória: Pertenço a uma família onde, em três gerações, as mulheres se suicidaram no mesmo dia, na mesma hora, do mesmo jeito. Eu não tive bisavó, eu não tive avó, eu não tive mãe. Quando criança, sofri abusos, físicos e emocionais. Eu estava totalmente perdida, quando encontrei um homem. Ele não tinha nenhum diploma. Era representante de uma nação indígena. Este homem olhou para os meus olhos e me disse: Ninguém pode machucar o seu Espírito, exceto você! E tudo o que eu sei, aprendi com ele. Depois fiz um doutorado, para que vocês me ouçam... Ela terminou a sua palestra, com um poema que uma menina fez para a sua mãe:
No caminho simples,
a pequena menina disse à sua mãe:
Eu estou seguindo suas pegadas, mãe,
e não quero cair.
Às vezes, eu as vejo, nitidamente.
Outras vezes, mal posso enxergá-las.
Caminhe um pouco mais firme, mãe!
Para eu poder lhe seguir.

Eu sei que há muito tempo,
você percorreu caminhos difíceis que não queria percorrer.
Conte-me tudo sobre este tempo, mãe; pois eu preciso saber.
Às vezes, quando eu duvido, eu não sei o que fazer.
Caminhe um pouco mais firme, mãe!
Para eu poder lhe seguir.

Um dia, quando eu crescer,
você é quem eu gostaria de ser.
Então eu terei uma pequena garotinha,
que vai querer me seguir.
Eu quero poder saber conduzi-la à Verdade!
Caminhe um pouco mais firme, mãe!
Para eu poder lhe seguir...

Trata-se, simplesmente, de caminhar cada dia um pouco mais firme e ereto. Cada dia, ser um pouquinho menos mentiroso, menos terrorista, menos desintegrado. Cada dia, ser capaz de um pouco mais de veracidade, de amor, de fraternidade. Caminhe um pouco mais firme, pai, mãe, político, empresário, educador, cientista, artista, sacerdote, terapeuta!... Para que valha a pena os jovens também caminharem ao nosso lado. Para que possamos, juntos, reinventar o mundo e realizar, plenamente, o esplendor da Utopia Humana.
 

                                          ESTE ARTIGO É DO SITE DE ROBERTO CREMA